quinta-feira, 12 de julho de 2012

Meu carnaval de 1.999


A desventura toda começou às 02h00 da manhã. De malas em punho, eu, meu irmão e o Tietinha nos metemos na estrada rumo a Lambari, onde passaríamos o carnaval. Saindo cedo evitaríamos o trânsito, além do que teríamos tempo para dar uma geral na casa, gentilmente emprestada por um de nossos vizinhos de Taubaté. Tivemos sucesso quanto ao trânsito, mas chegamos cansados e resolvemos dar uma dormida antes de qualquer coisa. Mas, ainda antes disso, eu resolvi fazer uma boquinha – na viagem tinha dado uma mordida em uma coxinha comprada em um desses restaurantes de beira de estrada, que estava fria, gordurosa e mereceu o lixo. Então, saí na busca por qualquer espécie de rango.
Seis da manhã e só havia um boteco aberto. No boteco só tinha aqueles salgadinhos de saquinho sabor queijo. Os salgadinhos de saquinho eram todos de marcas desconhecidas, prováveis fabriquetas de fundo de quintal. Peguei um que tinha a Turma da Mônica estampada na embalagem, do qual com certeza o Maurício de Souza nunca ouviu falar e jamais recebeu qualquer quantia pelos direitos de comercialização. O cheiro parecia-se com o de dedos do pé em cujos vãos foi depositada generosa porção de gorgonzola esfarelado, para depois ser coberto por grossa meia de lã, trabalhando algumas horas sob sol escaldante. Comi uns três, quatro, mas depois desisti. No entanto, a taça já começava a encher.
Acordamos, demos uma geral na casa e saímos pra rua. Após um breve rolê perscrutador pela cidade, decidimos almoçar. Almoço mineiro. Arroz, feijão gordo, carne de porco e batatas fritas, tudo isso regado a dois litros de coca-cola. A taça encheu ainda mais um pouco.
Satisfeitos, continuamos a perambular, até que encontramos algo interessante para fazer: andar a cavalo. Sob sol intenso nós iniciamos a cavalgada, o corpo sacolejando ao ritmo do trote, o estômago como uma máquina de lavar roupas cheia de comida.
Por algum tempo trotamos juntos, mas depois eu fiquei pra trás, inábil como sou no trato com esse tipo de animal. Pra piorar, de uma hora pra outra ele resolveu empacar. Com o calcanhar dei umas cutucadas na barriga dele e nada! Como não havia muito tempo o ator Christopher Reeves tinha ficado tetraplégico por cair de um cavalo, achei melhor não arriscar. Desci do cavalo e, levando-o pelo cabresto, retornei caminhando lentamente, e debaixo de muito sol e calor, os cerca de três quilômetros que nos separavam da praça de onde havíamos partido.      Pra completar o papelão, ao devolver o cavalo, reclamei que o mesmo “estava com algum problema”. O homem me olhou com desconfiança e depois, dando de ombros, como quem não estava entendendo nada, chamou um moleque de uns nove anos:
- Óóóó Joãozinho, o moço aqui tá falando que o cavalo tá cum problema.
            Sem titubear, o garotinho subiu no cavalo, cutucou sua barriga levemente e saiu em desabalada carreira pelas ruas da cidade, até sumir de vista. O homem me olhava agora com expectativa, esperando pelo que eu iria dizer. Em silêncio e exalando vergonha, eu abri a carteira, tirei o dinheiro e paguei o cavalo. O que mais eu poderia fazer?
            Bom, aquilo havia sido o suficiente. Eu precisava deitar um pouco. Sozinho, voltei caminhando pra casa.
            No começo foi apenas um ruído gorgolejante que subia pelo estômago. Depois, juntou-se a ele uma dor lancinante, que começou a descer até o cóccix. Depois passou a girar por dentro da minha barriga, parecendo ecoar por todos os órgãos. Por fim a taça finalmente transbordou. Depois de coxinhas de beira de estrada, salgadinhos chulezentos, carne de porco, feijão gordo, refrigerante, sacolejos cavalares e caminhadas sob o sol, finalmente o que estava contido irrompeu com uma fúria avassaladora, uma força da natureza que não aceitava questionamentos ou reflexões.

            Do quarto para o banheiro e vice-versa foram quatro vezes em menos de 10 minutos. Minhas pernas estavam bambas. Após muitos vômitos e diarréias, a minha boca secou completamente. Entrei no carro, desesperado para comprar uma garrafa de água gelada. Encontrado o produto, de um só gole emborquei desesperadamente 500ml de água com gás. Prazer imediato. Satisfeito, caminhei aliviado até o carro. Antes de abrir a porta senti um intenso calafrio percorrer, centímetro por centímetro, todos os meus nove metros de intestino. Rapidamente entrei no carro e girei a chave, acelerando - já com o suor escorrendo pelo rosto – até a porta da casa, onde subi correndo os degraus da escada (para trás ficou o carro aberto, no meio da rua) e entrei no banheiro como um furacão. Ali se foi embora toda a água que eu havia bebido dois minutos atrás. Meu corpo ardia em febre. A situação era grave.
            Resumo da Ópera: fui a uma farmácia, onde tomei uma injeção e remédios para prender o intestino; pra casa, levei uma garrafa de soro fisiológico. E assim foi minha primeira noite de carnaval: com febre, dores e tomando uma colher de soro fisiológico a cada cinco minutos, a despeito da minha sede intensa. Naquela noite sonhei com melancia, gatorade e suco de laranja.
            No dia seguinte eu já estava bem melhor e decidi que era hora de retomar a rotina carnavalesca, ou seja, tomar todas e comer desregradamente. Assim foi o dia inteiro, e nada me aconteceu; meu intestino finalmente normalizou e voltou a segurar o cocô. O problema é que ele não só segurou, mas também travou, trancou: tardiamente eu descobri que o farmacêutico havia se equivocado na dose, e agora eu estava com o intestino totalmente preso. Ou seja, tudo o que eu comi e bebi naquele dia ia ficar dentro de mim por um bom tempo. Principalmente os gases. Então começou a minha segunda via crucis.
            Nunca tinha sentido dor como aquela. Os gases, sem saída, extrapolaram os limites do intestino e foram subindo até provocar pontadas lancinantes na minha cavidade torácica, que parecia prestes a explodir, forçando-me a andar completamente curvado para agüentar a dor. Rapidamente fui a uma outra farmácia, onde me recomendaram o Luftal. Do momento em que o ingeri até fazer o efeito desejado foram duas longas horas contorcendo-se de dor na cama. Acredito que nunca antes peidos e arrotos foram tão celebrados e recebidos com tantas glórias e aleluias.

            Estranhamente, tudo correu bem até o dia de ir embora. Saímos de Lambari no início da tarde e esperávamos chegar antes do anoitecer em Taubaté. No entanto, a noite já era presente e não havíamos sequer chegado à Via Dutra. Quando começamos a debater aquela situação, vimos um avião pousando bem ao nosso lado e só aí entendemos o que estava acontecendo: em algum momento erramos o caminho e seguimos pela Fernão Dias até São Paulo. O avião estava descendo no aeroporto de Guarulhos.
            Aquilo foi a cereja sobre o bolo, o que faltava para tornar completa a minha desastrosa experiência de carnaval.
            Mas tudo bem. Entre mortos e feridos salvaram-se todos. Mesmo porque, dali a dois meses, eu iria conhecer a mulher da minha vida . . .