Mohamed Bouazizi é um nome que não desperta a reverência que deveria. Esquecido, ou desconhecido, pela massa mundial, esse jovem de 26 anos mudou o rumo da história, ascendendo a uma esfera onde pouquíssimos exemplares da espécie humana conseguiram chegar. Bouazizi não foi político, artista consagrado, esportista vitorioso ou cientista. Tampouco liderou passeatas ou comícios. Mas iluminou a vida de milhões de pessoas com a luz das chamas que consumiram o seu próprio corpo. Em dezembro de 2010, Bouazizi ateou fogo em si mesmo, e a Tunísia despertou de um regime ditatorial que já durava 23 longos anos. Em pouco tempo aquela nova ordem se alastrou pela África e Oriente Médio. Foi o início da Primavera Árabe.
Bouazizi era o típico cidadão invisível desse nosso mundo contemporâneo: muito pobre - trabalhava desde os dez anos para sustentar a mãe doente e a irmã – sobrevivendo nos subterrâneos da pirâmide social, sem qualquer representatividade na estrutura política e econômica de seu país, e tudo isso agravado pela ditadura vigente na Tunísia. Nunca tendo conseguido qualquer emprego formal, Bouazizi vendia frutas e verduras pelas ruas de Ben Arous. Durante todos esses anos ele sofreu constante assédio da polícia local, que confiscava suas mercadorias, o agredia e tentava extorquir-lhe dinheiro. Até que finalmente uma policial confiscou seu carrinho de frutas e o proibiu de trabalhar, não sem antes dar um tapa em seu rosto e cuspir nele. Desesperado, ele então procurou pelo governo regional para resolver a sua situação, mas recebeu um não como resposta. Sem ter mais a quem recorrer, ele tomou a decisão que, sem que soubesse, mudaria de maneira radical e inédita o quadro político e social do mundo árabe: em frente ao prédio do governo local, encharcou seu corpo com diluente e ateou fogo. Vinte dias depois ele morria em um hospital perto de Túnis.
Bouazizi, que só queria ser respeitado como trabalhador, deixou uma mensagem para sua mãe, pedindo perdão por ter perdido a esperança em tudo. Fico pensando: que estado de desesperança poderia levar uma pessoa a provocar em si mesma uma morte tão horrenda?
Imaginar, e entender, o desespero de Bouazizi, significa projetar-se por toda a sua trajetória de vida e acompanhar a pequenez e fragilidade do homem comum diante da brutal e fria arquitetura dos poderes instituídos, bem como sua total impotência frente às decisões arbitrárias de líderes tão isolados em suas cabines de comando, tão distantes da realidade das ruas, que jamais deveriam ter o poder para defini-la. Bouazizi perdeu as esperanças porque não via futuro diferente do que havia sido sua vida até aquele momento: injustiças, sofrimento e humilhação.
Como uma espécie de divindade, os governos mundiais (e não somente as ditaduras) põem-se longe e acima das vistas da população, agem sem dar justificativas (ou as dão como distorções da verdade), determinam destinos com assinaturas velozes e gestos grandiloqüentes, tornam-se inacessíveis para tornarem-se inquestionáveis, e, como o mágico de Oz, criam ao seu redor uma fantasia de poder ilimitado para desestimular qualquer tentativa de aproximação e conhecimento da verdade. Interesses econômicos ou políticos geralmente são o motivo principal – e jamais assumido – para que as máquinas governamentais desprezem os direitos básicos de sua população, punindo ou excluindo qualquer um que ouse se meter nos negócios administrados pelos senhores do mundo.
Bouazizi perpetrou sua auto-imolação em praça pública porque sabia ser esse seu único e último grito por justiça, tão alto que finalmente seria ouvido além dos intransponíveis muros que separam os governados de seus governantes. Ao dar esse grito de dor e revolta, Bouazizi deixou de ser invisível e passou a existir, a ser alguém, ainda que tivesse pagado com a própria vida para que isso acontecesse.
Dias depois o ditador Ben Ali o visitou no hospital. Preocupado com as constantes manifestações da população após o caso, ele tentou adotar medidas emergenciais para amenizar os altos índices de desemprego e diminuir a insatisfação geral. Mas o povo da Tunísia já havia tomado a sua decisão, e, dois meses depois, após muitos conflitos violentos, Ben Ali finalmente foi obrigado a renunciar e fugir para a Arábia Saudita. Em pouco tempo as populações de outros países árabes começaram a seguir o exemplo tunisiano.
Vítimas de governos que precarizam a condição humana não são exclusividade do mundo árabe. Em nosso próprio país vai aos milhares o número de casos de injustiça, desrespeito, abuso de poder, retaliação e perseguição perpetrados contra a população, principalmente os mais pobres, sem qualquer resposta positiva por parte do governo ou da própria sociedade, que apenas se mostra indignada diante das notícias. Muitos são os que, em nosso país, possuem tantos motivos quanto Bouazizi para gritar sua revolta e sofrimento a plenos pulmões.
Semana passada, conheci o caso de uma trabalhadora de uma grande empresa multinacional aqui no Brasil, que, apesar de seriamente doente devido à exposição a agentes nocivos no seu ambiente de trabalho, foi demitida sem qualquer direito à defesa. Como forma de protesto, acampou em frente à empresa, acorrentando-se ao portão. Mesmo assim a injustiça ainda continua.
Qual será o próximo passo a ser dado por ela?
Atear fogo ao próprio corpo?