O célebre
livro de Jack Kerouac foi escrito em 1951, em três semanas – regadas a muito
café, contrariando o mito de que seu combustível havia sido a benzedrina, ou
benny, como os mais íntimos a chamavam – em um grande rolo de folhas de papel
vegetal coladas umas às outras, perfazendo um total de 37 metros de história.
Idolatrado pelo pessoal da contracultura e pela juventude extraviada em geral,
o livro passou por gerações, deixando sempre a sua marca, dentre elas a mais
importante: influenciou diretamente na estética e no estilo de escrita da
literatura contemporânea ocidental, apresentando uma prosa veloz e fluídica, da
mente para o papel sem maiores reflexões, um passo evolutivo para uma real apropriação
das novas idéias, sensações e pensamentos que surgiriam pelo mundo nos anos
vindouros. Da maluquete hippie aos escritores contemporâneos, do punk aos
movimentos de esquerda, dos universitários de todas as épocas aos aventureiros
de plantão, o livro de Kerouac foi, desde sempre, um convite ousado a viver a vida
à flor da pele, mochila nas costas e pouco dinheiro, o presente independente e
totalmente desconectado do passado e do futuro.
Desse meio
cultural por onde circulava Kerouac e sua turma nasceu o movimento beat, que procurava desconstruir toda aquela
auto-imagem fantasiosa que os filhos do Tio Sam tinham de si mesmos e que havia
sido o alicerce para a criação do famoso sonho americano: as casinhas
charmosas, com suas cercas imaculadamente brancas e jardins impecáveis; as
famílias perfeitas, com seus porta-retratos felizes e participações no coral
dominical; os bairros residenciais, com suas calçadas arborizadas e vizinhos sempre
fraternais. Como uma paleta anárquica, o movimento beat misturou com fúria todas as cores sombrias do establishment, criando perspectivas em aberto
a serem preenchidas por uma nova maneira de viver e sentir a vida. Com On the Road Kerouac estabelece que é na
estrada que se constrói essa nova obra: nada
atrás de mim, tudo à minha frente, como sempre acontece na estrada, era o
que ele dizia. E tudo isso ritmado pelos acordes do bee-bop, a trilha sonora das
aventuras da geração beat.
Jack Kerouac
não era, contrariamente às impressões que se possa ter, um cara de vanguarda,
desgarrado dos arcaicos laços familiares, seguro de suas decisões e impulsivo
por natureza. Freqüentes eram suas dúvidas quanto a estar fazendo a coisa certa
e, durante a viagem, muitas vezes ele chegou a se perguntar o que estava
fazendo a cinco mil km de casa. Portava-se na maioria das vezes de maneira
tímida. Na verdade, Jack morava com a mãe, com quem ia sempre visitar a irmã e
para quem sempre mandava dinheiro. Havia fortes laços familiares em alguns daquela
turma, incluindo Kerouac, algo não muito esperado quando se tratava de pessoas
que estavam sempre à revelia pelo mundo. Sua grande viagem rumo ao Oeste,
assunto principal do livro, seria a primeira aventura de um americano cuja
vida, até então, havia ficado restrita ao seu espaço natal.
Seus
companheiros de viagem eram, como ele, párias de uma sociedade que teimava em
domesticá-los, em meter-lhes grilhões; um grupo de ovelhas desgarradas, sem
dinheiro e com destino incerto. Sem um objetivo claro, eles queriam
simplesmente viajar, dedicar-se à sua arte, conhecer pessoas e se divertir.
Trabalhar, apenas se necessário - o que quase sempre era. Pelas estradas eles
se esbarravam, e era quando nascia uma espécie de fraternidade entre eles, que
dividiam desde caronas até refeições, um maço de cigarros e até o amor da mesma
mulher. Trabalhava-se durante o dia para ter o que comer à noite, e as direções
na estrada eram tomadas de acordo com a necessidade do momento. Quando a
situação apertava, então praticavam pequenos roubos, como comida, cigarros e
gasolina. Abandonavam às vezes mulher e filhos, mas jamais se abandonavam.
Um dos
companheiros de estrada de Kerouac merece uma menção especial: Neal Cassady.
Segundo alguns, foi Neal foi quem realmente inspirou Kerouac a ultrapassar
todos os sinais vermelhos, tanto dos comportamentos vigentes quanto da própria
literatura. Alguns afirmam que, sem Neal, não haveria On the Road. Ele personificava um tipo de liberdade que era embriagante
e avassaladora, o Graal pelo qual buscava Kerouac naqueles dias. Dono de frases
ininteligíveis cujo sentido só ele percebia, Neal era hiperativo e misturava
diversos assuntos – muitas vezes completamente desconectados entre si – na
mesma conversa; quando falava era aos borbotões, muitas idéias em uma única e
alucinada seqüência, sem vírgulas, pausas ou reticências. Foi ele quem empurrou
Kerouac definitivamente em direção à vida nas estradas.