A desventura toda
começou às 02h00 da manhã. De malas em punho, eu, meu irmão e o Tietinha nos
metemos na estrada rumo a Lambari, onde passaríamos o carnaval. Saindo cedo
evitaríamos o trânsito, além do que teríamos tempo para dar uma geral na casa,
gentilmente emprestada por um de nossos vizinhos de Taubaté. Tivemos sucesso
quanto ao trânsito, mas chegamos cansados e resolvemos dar uma dormida antes de
qualquer coisa. Mas, ainda antes disso, eu resolvi fazer uma boquinha – na viagem
tinha dado uma mordida em uma coxinha comprada em um desses restaurantes de
beira de estrada, que estava fria, gordurosa e mereceu o lixo. Então, saí na
busca por qualquer espécie de rango.
Seis da manhã
e só havia um boteco aberto. No boteco só tinha aqueles salgadinhos de saquinho
sabor queijo. Os salgadinhos de saquinho eram todos de marcas desconhecidas, prováveis
fabriquetas de fundo de quintal. Peguei um que tinha a Turma da Mônica
estampada na embalagem, do qual com certeza o Maurício de Souza nunca ouviu
falar e jamais recebeu qualquer quantia pelos direitos de comercialização. O
cheiro parecia-se com o de dedos do pé em cujos vãos foi depositada generosa
porção de gorgonzola esfarelado, para depois ser coberto por grossa meia de lã,
trabalhando algumas horas sob sol escaldante. Comi uns três, quatro, mas depois
desisti. No entanto, a taça já começava a encher.
Acordamos,
demos uma geral na casa e saímos pra rua. Após um breve rolê perscrutador pela
cidade, decidimos almoçar. Almoço mineiro. Arroz, feijão gordo, carne de porco
e batatas fritas, tudo isso regado a dois litros de coca-cola. A taça encheu
ainda mais um pouco.
Satisfeitos,
continuamos a perambular, até que encontramos algo interessante para fazer:
andar a cavalo. Sob sol intenso nós iniciamos a cavalgada, o corpo sacolejando
ao ritmo do trote, o estômago como uma máquina de lavar roupas cheia de comida.
Por algum
tempo trotamos juntos, mas depois eu fiquei pra trás, inábil como sou no trato
com esse tipo de animal. Pra piorar, de uma hora pra outra ele resolveu empacar.
Com o calcanhar dei umas cutucadas na barriga dele e nada! Como não havia muito
tempo o ator Christopher Reeves tinha ficado tetraplégico por cair de um cavalo,
achei melhor não arriscar. Desci do cavalo e, levando-o pelo cabresto, retornei
caminhando lentamente, e debaixo de muito sol e calor, os cerca de três
quilômetros que nos separavam da praça de onde havíamos partido. Pra completar o papelão, ao devolver o
cavalo, reclamei que o mesmo “estava com algum problema”. O homem me olhou com
desconfiança e depois, dando de ombros, como quem não estava entendendo nada,
chamou um moleque de uns nove anos:
- Óóóó
Joãozinho, o moço aqui tá falando que o cavalo tá cum problema.
Sem
titubear, o garotinho subiu no cavalo, cutucou sua barriga levemente e saiu em
desabalada carreira pelas ruas da cidade, até sumir de vista. O homem me olhava
agora com expectativa, esperando pelo que eu iria dizer. Em silêncio e exalando
vergonha, eu abri a carteira, tirei o dinheiro e paguei o cavalo. O que mais eu
poderia fazer?
Bom,
aquilo havia sido o suficiente. Eu precisava deitar um pouco. Sozinho, voltei caminhando
pra casa.
No
começo foi apenas um ruído gorgolejante que subia pelo estômago. Depois,
juntou-se a ele uma dor lancinante, que começou a descer até o cóccix. Depois
passou a girar por dentro da minha barriga, parecendo ecoar por todos os
órgãos. Por fim a taça finalmente transbordou. Depois de coxinhas de beira de
estrada, salgadinhos chulezentos, carne de porco, feijão gordo, refrigerante,
sacolejos cavalares e caminhadas sob o sol, finalmente o que estava contido irrompeu
com uma fúria avassaladora, uma força da natureza que não aceitava
questionamentos ou reflexões.
Do
quarto para o banheiro e vice-versa foram quatro vezes em menos de 10 minutos. Minhas
pernas estavam bambas. Após muitos vômitos e diarréias, a minha boca secou
completamente. Entrei no carro, desesperado para comprar uma garrafa de água
gelada. Encontrado o produto, de um só gole emborquei desesperadamente 500ml de
água com gás. Prazer imediato. Satisfeito, caminhei aliviado até o carro. Antes
de abrir a porta senti um intenso calafrio percorrer, centímetro por
centímetro, todos os meus nove metros de intestino. Rapidamente entrei no carro
e girei a chave, acelerando - já com o suor escorrendo pelo rosto – até a porta
da casa, onde subi correndo os degraus da escada (para trás ficou o carro
aberto, no meio da rua) e entrei no banheiro como um furacão. Ali se foi embora
toda a água que eu havia bebido dois minutos atrás. Meu corpo ardia em febre. A situação era
grave.
Resumo
da Ópera: fui a uma farmácia, onde tomei uma injeção e remédios para prender o
intestino; pra casa, levei uma garrafa de soro fisiológico. E assim foi minha
primeira noite de carnaval: com febre, dores e tomando uma colher de soro
fisiológico a cada cinco minutos, a despeito da minha sede intensa. Naquela
noite sonhei com melancia, gatorade e suco de laranja.
No
dia seguinte eu já estava bem melhor e decidi que era hora de retomar a rotina
carnavalesca, ou seja, tomar todas e comer desregradamente. Assim foi o dia
inteiro, e nada me aconteceu; meu intestino finalmente normalizou e voltou a segurar
o cocô. O problema é que ele não só segurou, mas também travou, trancou:
tardiamente eu descobri que o farmacêutico havia se equivocado na dose, e agora
eu estava com o intestino totalmente preso. Ou seja, tudo o que eu comi e bebi
naquele dia ia ficar dentro de mim por um bom tempo. Principalmente os gases.
Então começou a minha segunda via crucis.
Nunca
tinha sentido dor como aquela. Os gases, sem saída, extrapolaram os limites do
intestino e foram subindo até provocar pontadas lancinantes na minha cavidade
torácica, que parecia prestes a explodir, forçando-me a andar completamente curvado
para agüentar a dor. Rapidamente fui a uma outra farmácia, onde me recomendaram
o Luftal. Do momento em que o ingeri
até fazer o efeito desejado foram duas longas horas contorcendo-se de dor na
cama. Acredito que nunca antes peidos e arrotos foram tão celebrados e recebidos
com tantas glórias e aleluias.
Estranhamente,
tudo correu bem até o dia de ir embora. Saímos de Lambari no início da tarde e
esperávamos chegar antes do anoitecer em Taubaté. No entanto, a noite já era
presente e não havíamos sequer chegado à Via Dutra. Quando começamos a debater
aquela situação, vimos um avião pousando bem ao nosso lado e só aí entendemos o
que estava acontecendo: em algum momento erramos o caminho e seguimos pela
Fernão Dias até São Paulo. O avião estava descendo no aeroporto de Guarulhos.
Aquilo
foi a cereja sobre o bolo, o que faltava para tornar completa a minha
desastrosa experiência de carnaval.
Mas
tudo bem. Entre mortos e feridos salvaram-se todos. Mesmo porque, dali a dois
meses, eu iria conhecer a mulher da minha vida . . .