Quando
decidimos colocar a República Tcheca em nosso roteiro, queríamos, além de
Praga, aproveitar a estadia para conhecer alguma outra cidade na região. Sem
idéias sobre qual poderia ser esse outro destino, busquei no Mochileiros.com
alguma dica que pudesse “iluminar” nosso roteiro. Foi assim que chegamos à
Cesky Krumlov, cidade sobre a qual nunca tínhamos ouvido falar, mas cuja
descrição nos fez ter certeza de que aquele era um lugar onde valeria à pena ir.
E ainda fomos além: diferentemente da maioria dos turistas, que geralmente fazem
um “bate e volta” de Praga a Cesky Krumlov no mesmo dia, resolvemos passar uma
noite lá e só voltar no fim do dia seguinte. Foi a melhor coisa que fizemos.
Sendo assim,
comprei a passagem de ônibus aqui mesmo no Brasil, e levei comigo apenas o
comprovante impresso. Já em Praga, na noite anterior à viagem, o gerente do
hotel nos explicou como deveríamos fazer para chegar até a estação de ônibus: fácil,
duas linhas de metrô e já estaríamos lá. Levantamos da cama às cinco e meia da
manhã, para não corrermos nenhum risco, já que o ônibus sairia às sete da
estação. Como voltaríamos depois à Praga e ficaríamos mais um dia no mesmo
hotel, deixamos nossas malas pesadas lá e fomos apenas com as mochilas menores.
Pra quem não está de carro, esses arranjos na logística são muito importantes
para tornar a viagem menos cansativa e, é claro, mais leve e divertida.
Chegamos à
estação de ônibus em Praga e o dia ainda estava escuro. A estação, vazia. Pra
não perder o costume, confirmei umas três vezes, com motoristas escolhidos
aleatoriamente, se o ônibus ainda não tinha saído. Então começou a chegar mais
gente e, com poucos minutos de atraso, pegamos a estrada rumo a Cesky Krumlov. O
ônibus ia quase lotado, mas bastante confortável e com um excelente serviço de
bordo, algo um tanto quanto inesperado para uma viagem de apenas três horas.
Chegamos por
volta das 10 da manhã e fomos direto para a Pension Adalbert (cinco minutos de
caminhada), onde havíamos feito reserva. A pousada (ou pension . . .) fica bem
no centro histórico, numa viela estreita, em um prédio do século 15. Ficamos
muito satisfeitos com a escolha, já que o quarto era bastante confortável e com
vista para o Castelo, sem falar no farto café da manhã servido no porão todo estilizado
(a dona era de Cingapura, então tinha algumas coisas estranhas para um desjejum,
como, por exemplo, pepino).
Deixamos nossas mochilas lá e saímos pra dar um rolê
perscrutativo, sem se preocupar com roteiro ou qualquer coisa, apenas caminhar
sem destino. Na verdade, Cesky Krumlov tem duas atrações: uma é o castelo, que
domina toda a paisagem urbana do alto de uma colina, bem no centro da cidade. A
outra atração é a própria cidade, que parece saída de um conto de fadas.
Juntam-se as duas e você tem dois dias repletos de pequenos e grandes prazeres.
Por que Cesky
Krumlov parece uma cidade de conto de fadas? Porque é pequena, com vielas
estreitas e charmosas, e seculares casinhas coloridas de telhados impecáveis. Também
porque tem um sinuoso riozinho de corredeiras que corta toda a cidade, cujo
murmúrio das águas embala carinhosa e continuamente as caminhadas ao longo de
suas margens. Além disso, é cercada por florestas que, no outono, acrescentam à
já extraordinária paleta de cores da paisagem incríveis tons de dourado e
vermelho. E, é claro, porque tem um castelo bem no centro, com uma torre incrível
em estilo oriental e jardins perfeitos a perder de vista. Talvez por tudo isso,
foi tombada como patrimônio cultural da humanidade pela UNESCO. Mas também,
contrariamente a tudo isso, Cesky Krumlov foi a cidade escolhida para as filmagens
do filme de terror “O Albergue”.
As ruas estavam bem movimentadas, já que Cesky
Krumlov é bastante procurada por europeus e asiáticos. Resolvemos então conhecer
o castelo. Pagamos e fomos primeiro subir na Torre. E por falar em Torre, acho
que subimos umas quinze em toda a viagem pela Europa. Muitas com mais de 300
degraus. Queima calórica muito bem vinda haja vista a contínua ingestão de
delícias gastronômicas (naquele momento tinha acabado de comer um doção nervoso!). Mas a vista da cidade
lá de cima compensou o esforço.
E eu já ia descendo quando notei um ajuntamento
repentino de pessoas na ponte sobre o fosso do castelo, lá embaixo. Rapidamente
eu entendi o que acontecia. Algo que eu tinha até esquecido. Caminhando
preguiçosamente pelo fosso, os guardiões do castelo se exibiam para os
turistas: dois enormes ursos pardos. Uma das atrações do lugar, os animais vivem
no fosso do castelo, uma área grande que se estende pelos dois lados sob a
ponte. O local é arborizado, limpo e tem dois laguinhos de pedra, com direito
até à queda dágua. Dá pra ver claramente que os animais são muito bem tratados.
A “casa” deles fica debaixo da ponte e, para tirá-los de lá (afinal, o público
quer vê-los!!), os tratadores colocam as frutas e verduras (nunca poderia
imaginar que eles fossem vegetarianos) longe da “toca”. O público vibra, as
crianças deliram, e os ursos . . . bom, eles não estão nem aí.
Depois entramos na área interna do castelo. Entre
vestuários, armas, móveis e objetos seculares, chamou a nossa atenção o esqueleto
de um santo, totalmente coberto de jóias e depositado em uma urna transparente
(solenemente macabro!). Não lembro o nome, mas devia ser algum santo regional,
já que eu nunca tinha ouvido falar nele.
Depois fomos aos porões do castelo, um labirinto
de cavernas enormes onde, na época medieval, eram guardados os barris de vinho
e, atualmente, abriga uma perturbadora exposição de um artista local (Miroslav
Parel). Por sinal, em toda a cidade há obras desse cara. Por último, passeamos
pelos extensos jardins do castelo, até a parte onde ele começa a se transformar
em uma floresta sinistra (olha “O Albergue” aí!).
Comentando com
a dona do hotel sobre as cervejas da Rep. Tcheca, ouvimos dela que havia uma
marca de cerveja, a Eggenberg, que era produzida em Krumlov, e apenas lá, desde
1560. O compromisso batia novamente à minha porta. Agora tínhamos uma missão na
cidade. Sair em busca da famigerada Eggenberg.
Metemo-nos
pelas ruazinhas pitorescas de Krumlov com aquela sensação de que a qualquer
momento o Pinocchio surgiria de dentro de uma daquelas casinhas, fugindo do
velho Gepeto. Ou ouviríamos a melodia hipnótica do flautista de Hamelin
invadindo a cidade. Ou então trombaríamos com um cavaleiro saindo
apressadamente em direção à floresta, na busca pelo coração da Branca de Neve.
Enquanto isso, Rapunzel aguardaria por seu amado, trancada na torre da igreja.
Em nossa demanda, atravessamos toda a cidadezinha, mas
só achávamos a cerveja
Mas tínhamos
uma missão a cumprir e não podíamos parar por ali. Foi quando então olhamos
para o outro lado da ponte e vimos um boteco, que parecia ser o “pé-sujo” da
cidade (e era!). Em uma de suas paredes, pendurada, uma placa da cerveja
Eggenberg.
Finalmente
havíamos encontrado o Graal.
E ali, no “pé-sujo”, desfrutamos do sabor secular da
cerveja, devidamente acompanhada por um mix de salsichas tchecas.
Ainda estava
ao meio da tarde quando nos sentamos em um dos restaurantes às margens do rio;
todos eles colocam suas mesas no gramado, em frente ao castelo, o que cria um
ambiente de puro deleite. Comemos faisão e coelho, regados à canecas da
Budweiser Budvar (segundo os tchecos, essa é a Budweiser original, questão que
está em litígio com os americanos há mais de 40 anos). Depois de um tempo sentado
ali, já com um bobo sorriso alcoólico nos lábios, começou a ventar. E o vento
arrancava das árvores ao redor suas folhas maduras, ou seja, as vermelhas e
douradas, que caiam em grande número e eram lançadas sobre o rio enquanto o sol
as atingia em cheio, fazendo-as todas brilharem juntas, piscando no ar como
luzes de uma árvore de natal etérea. Olhando pra tudo aquilo fiquei em uma
espécie de êxtase: as folhas soltas brincando pelo ar, brilhando às centenas ao
refletirem o sol, o murmúrio das corredeiras a poucos passos da nossa mesa, o
castelo imponente do outro lado do rio, a paisagem ao redor que poderia
inspirar dezenas de aquarelas. Nesse momento, eu simplesmente estiquei as
pernas, cruzei as mãos atrás da cabeça como apoio, relaxei, e disse, para mim
mesmo:
- Êêêêê
vidããããão!!!!
Voltamos pro
hotel e demos uma descansada. À noite, saímos pra jantar (caramba, como
conseguimos comer tanto!). Em
Cesky Krumlov há três tavernas medievais, instaladas no
subsolo de prédios antigos, em grandes porões de pedra com várias salas
interligadas, todas ambientadas e decoradas para fazê-lo sentir-se na Idade
Média. Em uma delas, na praça central da cidade, você precisa entrar no saguão
de um hotel para conseguir acessá-la, mas não há nada indicando o caminho.
Então, em um canto totalmente escondido, você descobre uma porta muita antiga,
de madeira, por onde eu, que tenho 1,85m, tive dificuldades para passar. A
porta leva você a uma escada em caracol, tão estreita que chega a dar
claustrofobia, e que desce vertiginosos 8 metros por uma cavidade
rochosa. Então você chega à taverna. Conhecemos o lugar e, pra não perder a
viagem, carcamos mais uma breja. Em outra, onde jantamos, as carnes são
preparadas à maneira medieval, com o fogo no centro do salão, sob um duto
rochoso por onde saía a fumaça. Nesse lugar ímpar, que recria em detalhes a atmosfera
do mundo medieval, nós comemos muito, bebemos idem, e ainda teve sobremesa. A
conta? O equivalente a R$65,00!!
No dia
seguinte o tempo amanheceu chuvoso. Fomos até um dos restaurantes à beira do
rio e pedimos ao garçon alguma bebida pra esquentar. Ele sugeriu a medovina,
uma bebida típica feita à base de mel fermentado e água. Perguntei se a bebida
não era o famoso e milenar hidromel, dos contos e lendas medievais, das
histórias de fantasia, da mitologia grega, também conhecido como “néctar dos
deuses”. Ele disse que sim e eu então pedi uma caneca, que chegou fumegante,
trazendo em seu interior um dos sabores alcoólicos mais antigos da humanidade.
Assim, debaixo de uma garoa fina, na cidade medieval de Cesky Krumlov, nós provamos
o néctar dos deuses. E eu pedi bis.
A Jô depois
quis dar um rolê pelas lojinhas, onde muitas já se enfeitavam com a decoração
de natal, vendendo enfeites e badulaques em geral sobre o tema. Deixei-a em
frente a uma delas, com os olhos brilhando diante de uma vitrine que parecia
ter sido decorada pelos próprios duendes do Papai Noel. Aproveitei então para conhecer
um lugar que eu já sabia que não a interessaria.
O Museu da Tortura de Cesky Krumlov também fica no
subsolo de um prédio antigo. Você desce por uma escadaria de pedra e chega a
uma série de salas rochosas escuras e úmidas, interligadas sequencialmente por
corredores estreitos. Nessas salas ficam expostos diversos instrumentos de
tortura, bem como cenários tétricos que revivem cenas de tortura, montadas com
bonecos de cera bastante realistas. Há também folhetos explicativos que contam os
detalhes de cada tipo de tortura e diversas histórias sobre essa prática na
época medieval. Mas o mais arrepiante nessa atmosfera de terror intencionalmente
criada são os sons. Durante todo o circuito (são quase dez salas interligadas)
há um sistema de som funcionando. Desse sistema saem constantemente dois tipos
de som: água pingando e . . . gritos. Mas não gritos chinfrins, de susto, ou de
alguém que acabou dar uma topada no dedão. Não, não! Gritos que só podem nascer
na mais extrema dor, gritos de total desespero. Gritos assombrados, que pareciam
ecoar vindos do além. Gritos alimentados pelas mais cruéis torturas. Como estava
um dia frio e chuvoso, não havia mais ninguém ali; caminhei solitário por mais
de 30 minutos naquele ambiente escuro, subterrâneo e perturbador. Uma das
experiências mais incríveis de toda a viagem.
Antes de pegar
o ônibus de volta a Praga, uma última degustação: vinho quente. Completamente diferente
do nosso, o vinho em questão é seco (ou seja, não adocicado) e vem com um
envelope de açúcar (pra quebrar o amargo, sem, no entanto, transformar em um
melaço) e um sachê de ervas para infusão. A única coisa em comum com o nosso é
que é quente. Entramos no ônibus com o último sabor de Cesky Krumlov ainda nos
lábios.