Ainda não havia lido Saramago. Dele só sabia que era excelente escritor, conhecia alguns de seus livros, e que havia ganhado o Prêmio Nobel. Ah!, e , é claro, que era português. O primeiro contato com a sua prosa veio agora, e ela me surpreendeu, ainda que eu já esperasse por isso. Em O Evangelho Segundo Jesus Cristo ele traz aos seus leitores uma imagem detalhada dos aspectos da vida do homem comum daquela época; uma visão das pequenas coisas, dos pequenos pensamentos que compunham o cotidiano daqueles que viviam miseravelmente nas aldeias ao redor de Jerusalém.
Nessa versão da história, os aspectos divinos dos personagens dão lugar à franqueza de suas manifestações puramente humanas, trazendo em seu bojo todos os traços que compõem nossa frágil estrutura. Introspecções e reflexões solitárias dão a tônica da relação entre os personagens e o mundo que os rodeia, com suas pessoas, governos, regras, direitos, deveres e dogmas religiosos. Percebem-se claramente os pensamentos do homem comum moldados pelos recursos mentais pertencentes à sociedade daquela época.
Questões como culpa, submissão ao sagrado, obediência à ordem social, resignação diante do divino, são devidamente tratadas no livro como as raízes formadoras de um estilo de vida que tira do ser humano, quase que totalmente, o direito de decidir sobre as mínimas e máximas questões de sua própria vida. Além disso, o povo hebreu trazia sobre sua cabeça o olhar perscrutador e dominante de dois mil e quinhentos anos de consolidação de uma mentalidade religiosa intrusiva e exigente, agravado ainda mais com a presença de um povo invasor, os romanos.
Jesus, ao perder o pai, aos 13 anos, decide sair de casa em busca de redenção e para tentar compreender melhor o episódio do massacre das crianças por Herodes, onde culpa seu pai e a si mesmo pela infeliz sorte que assaltou na calada da noite as desavisadas casas de Belém, uma espécie de síndrome do único sobrevivente. Dai em diante, de maneira egoísta, própria também da idade, ele abandona a mãe e os irmãos e sai em uma busca solitária pelas respostas que poderiam trazer-lhe paz. Jesus mostra-se arredio e errante, em nada desconfia de sua ascendência divina e mostra pouco das características que o faria, nos séculos seguintes, ser seguido por bilhões de pessoas. O Jesus aqui em nada lembra a sua contraparte bíblica.
Nessa fase de sua vida ele vive e trabalha alguns anos com o Pastor, uma figura misteriosa, um anjo/demônio que o próprio Deus recusa-se a identificá-lo. Tendo feito inclusive o papel de Anunciador na concepção natural do Cristo, ele esteve presente em vários momentos da vida do hebreu, sabia cada detalhe de sua vida. Suas palavras diretas e seu jeito de falar isento de qualquer filtro moral constrangiam Jesus e deixavam-no confuso. Mas ele não conseguia afastar-se da retórica questionadora e cativante do Pastor, que punha por terra e fazia pouco caso dos deveres religiosos dos judeus, proclamados por Jesus como a regra para uma vida una com Deus, e que ficava contrariado quando o via em tal desacordo com as leis. Era quando perdia a paciência e tentava convencê-lo do contrário, geralmente sem sucesso, e nessas discussões o Pastor sempre dava um nó nos pensamentos conservadores e pudicos do Cristo.
Jesus então encontra Deus pela primeira vez, em um redemoinho de fumaça no meio do deserto, quando então fica sabendo que está em seus planos divinos para o futuro. Ao questionar o Criador, insistentemente, sobre quais seriam tais planos, Jesus O aborrece e é dispensado; a sabedoria e o conhecimento do Cristo deveriam ser conquistados a duras penas, não havendo qualquer espécie de absorção divina das coisas que ele precisava aprender.
Caminhando sempre em direção a uma ampliação de sua percepção do mundo e da vida, ainda que sem saber, um Jesus perdido e desorientado chega finalmente à aldeia de Magdala. Lá, com os pés feridos pela caminhada através do deserto, ele é tratado e curado por uma prostituta. Maria de Magdala o recebe em sua casa e se rende a Jesus desde o primeiro momento em que o vê, proclamando sua eterna fidelidade a ele, tanto carnalmente quanto espiritualmente. É a primeira vez na história de Saramago que alguém reage a Jesus como que reconhecendo nele sua potencial divindade. Durante os dias em que permaneceu naquela casa, o Cristo abandonou o papel de julgador das aparências e conheceu a fundo o amor daquela mulher, que o amava em toda sua pureza e fragilidade. Jesus era um homem, e como um homem ele deveria viver.
Depois, Jesus retorna à sua família, que não crê em seu encontro com Deus, principalmente sua mãe. Durante toda a história a relação entre Jesus e sua mãe é tensa e frustrante. Decepcionado, ele parte no dia seguinte de volta à Magdala, onde ele e a ex-prostituta Maria se juntam para seguir viagem até as áreas de pesca. Mais tarde, a mãe de Jesus recebe a visita de um anjo que diz ser verdade o encontro de Jesus com Deus. Diz também que ela, Maria, não foi escolhida para ser a mãe do Cristo por seus dotes espirituais, mas sim porque Deus achou-a saudável e robusta, o que a deixa desconsolada; a santidade de Maria não é reconhecida no livro, a divindade de Jesus não é extensível aos pais. O próprio Deus é o Deus do Velho Testamento: ávido por cerimônias, sacrifícios e provas de devoção, provocador e insensível ao sofrimento humano. Não lembra em nada o Pai Amado do Cristo bíblico.
Ao redor do mar da Galiléia, Jesus e Maria de Magdala permaneceram por um bom tempo, e foi nessa época que se juntaram a ele seus futuros apóstolos, e também que ele realizou alguns de seus milagres, a maioria de maneira inconsciente e sem intenção. Dali sua fama se espalhou. E foi no meio daquele mar, envolvido por um denso nevoeiro, que ele, durante 40 dias e 40 noites (sentidos apenas por quem esperava às margens) reuniu-se por algumas horas em uma barca com Deus e o Diabo.
Ponto crucial do livro, o diálogo entre os três é um divisor de águas: a partir daquele momento, a vida de Jesus é direcionada inevitavelmente para o seu fim, e para o começo de sua influência na esfera futura da humanidade. Ali, Deus revelou seus planos.
Preocupado em ser adorado apenas pelo pequeno povo judeu, Deus queria, antes de qualquer coisa, expandir seus domínios a outros povos. Assim, ele decide transformar Jesus em mártir, de morte violenta, pois conhece muito bem suas crias humanas e sabe-as impressionáveis pela dor e pelo sofrimento. Jesus tenta resistir ao seu destino, mas Deus não permite tal opção, havendo uma tensão palpável entre os dois durante toda a conversa. Então Jesus, apelando para o último pedido de um condenado, pede que Deus lhe fale sobre o futuro após a sua morte. Então Deus começa a desfilar todas as mortes, guerras, injustiças e sofrimentos futuros da humanidade, como as Cruzadas e a Santa Inquisição, oriundos da palavra de Jesus e praticados em honra ao seu nome. O Cristo não se conforma com tanta crueldade e sangue derramado. De sua parte, o Diabo a todo instante lava as mãos, afirmando que todo aquele sofrimento nunca foi uma escolha sua, e que “é preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue”.
A conversa termina, Deus e o Diabo se retiram, e Jesus segue com seu destino. Dali até o seu fim na cruz tudo acontece muito rápido, como previsto e escrito. Quando se fecha o livro, a imagem de Jesus que fica na memória é a de um ser humano atormentado e solitário, alguém que não achou seu lugar no mundo, mas recebeu todo o peso dele em suas costas. Ele termina seus dias sem nenhuma fé em seu próprio sacrifício, abandonado por um Deus que o via apenas como um meio para alcançar seus ambiciosos fins.
Em seu último momento na cruz, Jesus olha para os céus e vê Deus. Lembrando de todo o sangue que será derramando no futuro em seu nome, ele diz:
- Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez!
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