Acordamos para
o nosso terceiro dia em Praga com muito entusiasmo. Os dois dias anteriores nos
havia deixado eufóricos e a expectativa era de que esse clima de deslumbramento
não fosse acabar tão cedo. Compramos algumas coisas no supermercado em frente
ao hotel, montamos uns sandubas (presunto Parma, queijos diversos, defumados,
tudo muuuuito barato!) e saímos rumo ao Josefov, o bairro judeu de Praga.
O povo judeu
está em Praga desde o século XII, quando fundaram uma comunidade próxima à
Praça da Cidade Velha; no passado, chegaram a viver lá perto de 180 mil
pessoas. Ao longo da história, os judeus de Praga sofreram diversos massacres e
perseguições, sendo o último à época da Segunda Guerra Mundial, quando os
nazistas tiveram a intenção de criar no bairro um museu para uma raça extinta
(o Terceiro Reich tinha a convicção de que conseguiria eliminar completamente
todo o povo judeu da face da Terra). Nesse museu do horror seriam expostos objetos
dos mais diversos tipos, frutos de pilhagens em casas judias e sinagogas de
toda a Europa Central. Tais objetos simbolizariam a vida e os costumes de um
povo que, executados os planos nazistas de extermínio, não mais existiria.
Do hotel ao Josefov dá uns dez minutos de caminhada. Passamos
pela Praça Velha e aproveitei pra tirar uma foto dos pedaços de tender
defumando no gira-grill nas barracas da praça.
Depois, a
gente seguiu por uma longa avenida até chegar ao bairro. Essa avenida é uma
espécie de passarela por onde desfilam as lojas chiques européias, como Louis
Vuitton, Prada, Gucci, e o escambau! Ou seja, passamos direto e de nariz
empinado (afinal de contas não nos misturamos com esse tipo de gente!).
Já no Josefov,
compramos o ticket que dava direito a entrar em todas as sinagogas e ainda no
cemitério. Os lugares são bem próximos uns dos outros, num raio de no máximo 2
quarteirões.
Começamos pela
Velha Sinagoga, a mais antiga da Europa ainda em funcionamento, construída no
século XIII. Logo na entrada os homens já recebem um kipá para cobrir a cabeça.
Como eu já estava de boné, guardei como lembrança. Lá dentro a gente tem acesso
ao salão principal, que é muito bem conservado, mas é proibido tirar fotos:
como o espaço era pequeno e tinha muita gente olhando, achei melhor não
arriscar, apesar da tentação. Depois seguimos para as outras sinagogas, onde
objetos sacros, vestimentas ritualísticas e documentos estavam expostos e
contavam um pouco dos mais de 800 anos de história do bairro e seus moradores.
Mas nada podia nos ter preparado para o que vimos na sinagoga Pinkas.
Você entra e
sobe até o 2º andar. Chegando lá, percebe que há vários salões interligados. Aproxima-se
das paredes e vê que todas, do rodapé ao teto, estão completamente cobertas por
palavras miúdas, quase ilegíveis, praticamente emendadas umas às outras. Ali
estão os nomes dos quase 80.000 judeus da República Tcheca que foram
assassinados sob o regime nazista. É quando você percebe o quão frio e superficial
um número isolado pode ser. Falar em oitenta mil pessoas assassinadas pode não suscitar
em quem ouve uma real percepção da tragédia, ainda mais se compararmos às
milhões de mortes contabilizadas ao final da guerra, assustadores números de
oito dígitos. Mas a visão dos oitenta mil nomes cobrindo as paredes daqueles
salões atinge em cheio o visitante, deixando-o verdadeiramente consciente das
reais e brutais dimensões do apocalipse nazista. Imaginem então o que
provocaria no espírito a visão de oitenta mil corpos . . .
Depois de
atravessar os salões há uma sala, pequena, mas que guarda entre suas paredes um
registro sensível da inocência das crianças, sempre esquecidas em tempos de
guerra. Ali estão expostos centenas de desenhos feitos pelos meninos e meninas judias
do campo de concentração de Terezin, próximo à Praga, de onde algumas escaparam
(242), e onde muitas morreram (aproximadamente 7.000). Do lúdico ao sombrio, do
amor ao ódio, da esperança ao desespero, os desenhos refletem o que ia no espírito
de cada uma daquelas crianças, cujas mentes inocentes sofriam, perturbadas, com
a crueldade de uma guerra que, como todas as outras, não reconhecia sua condição
infantil.
Depois dessa experiência bastante introspectiva,
seguimos para o Antigo Cemitério Judaico. Esse cemitério, além de ser muito
antigo (alguns estudiosos afirmam que ele data do século 10), traz outra
característica que foge do lugar comum. Como já foi dito, ao longo da história
os judeus de Praga sofreram várias espécies de perseguição, dentre elas a
segregação e confinamento da população judaica no Josefov por séculos. Sendo
assim, com o passar dos anos, o espaço no cemitério acabou se tornando insuficiente
para atender a demanda. A saída encontrada foi ir “enterrando” o próprio
cemitério à medida que acabava o espaço para novas sepulturas, cobrindo-o
completamente e criando, assim, uma nova área para os sepultamentos. No total
foram 12 camadas de terra sobrepostas umas às outras ao longo dos séculos.
Como, segundo os preceitos judaicos, as lápides não podem ser removidas, as
mais antigas, cujos túmulos haviam sido cobertos de terra, eram recolocadas
sobre as novas camadas de solo. Essa é a razão pela qual as lápides ficam tão
próximas umas das outras, quase encavaladas, desenhando um cenário caótico que
é a marca registrada do cemitério e a razão por ele ser tão admirado e
visitado. Eu achei tudo muito legal, tanto o visual quanto a própria história do
lugar. Secretamente, tirei algumas fotos enquanto caminhava por entre as
lápides. Só como curiosidade, esse cemitério é o mesmo que dá nome ao romance
do escritor Umberto Eco, O Cemitério de Praga.Por último, fomos à Sinagoga Espanhola, de longe a que tinha o interior mais deslumbrante. Chegava a lembrar uma mesquita, tamanha a quantidade de detalhes nas pinturas de suas paredes (meu deus, tomara que não haja extremistas lendo esse texto!!). No alto, um lustre enorme com o formato da Estrela de Davi. Ali foi mais difícil tirar as fotos sem ser percebido, porque tinha uma tiazinha com cara de encrenqueira que não parava de “caçar” possíveis transgressores da regra. Mas eu dei um “balão” nela e sai clicando às cegas. As fotos não ficaram como eu queria, mas tá valendo . . .
Na volta do
Josefov, reparamos mais detalhadamente em algo que já nos havia chamado a
atenção: não existem cachorros de rua em Praga. Não vimos nem unzinho sequer! E não é
porque a carrocinha da prefeitura (nem sei se existe isso lá!) captura e leva
pro abate. A verdade é que o povo tcheco é apaixonado por cães. Até sessão de cinema
para os cachorros assistirem com seus donos existe por lá! Já li que todo
tcheco que se preze tem um cachorro, e que se você se mudar pra lá e quiser ser
bem recebido na sociedade praguense, o primeiro passo é ter um ou dois
cachorros. Nas ruas, a todo instante você encontra um praguense passeando com
seu cão/cães. Eles os levam a todos os lugares! Até em restaurante eu vi pets
deitados ao pé das mesas! No metrô também vi muitos! Na verdade, onde os cães
não podem entrar há placas sinalizando a proibição; se não tiver uma placa proibindo,
é certeza que os donos vão entrar com seus animais. Não poder entrar é a
exceção à regra.
Fomos então conhecer o Igreja de Nossa Senhora
Vitoriosa, onde está exposta a estatueta do Menino Jesus de Praga. Eu esperava
uma baita igreja, com uma arquitetura impactante. Ledo engano. A igreja é bem
simples por fora (ainda mais se comparada às outras igrejas e catedrais que
conhecemos ao longo da viagem) e por dentro é uma igreja no estilo barroco, mas
sem nada de especial. A estátua fica em um pequeno altar do lado direito da
nave central, e não no altar principal. E estávamos admirando a obra de arte
que é o altar quando algo chamou a atenção da Jô: uma imagem bastante familiar
para nós brasileiros, mesmo os não religiosos. Ao lado do altar do Menino Jesus
de Praga, uma estátua de Nossa Senhora de Aparecida, doada pelo embaixador do
Brasil, nos deixou com um gostinho de saudade do nosso país. Não havia como não
reparar, já que a cor negra de sua pele é inconfundível e diferente de qualquer
outra estátua de Nossa Senhora pelo mundo. Depois entramos em uma sala, no
fundo da igreja, onde estão expostas diversas roupinhas que são utilizadas para
vestir a estatueta, costuradas por princesas e mulheres da alta nobreza ao longo
dos últimos três séculos. Por último, compramos uma lembrança pra minha mãe em
uma loja do lado de fora de igreja, já que a loja de dentro, a oficial,
praticava um preço nada espiritual, um verdadeiro assalto.
Antes de
voltarmos para o hotel, fomos comer alguma coisa. Como estávamos próximos ao
Castelo, segui uma dica postada no Mochileiros.com sobre um restaurante
medieval que havia por ali. O nome do lugar é U
SEDMI ŠVÁBŮ, ou, traduzindo, OS SETE SWABIANS, que é o nome de um conto dos
Irmãos Grimm (a Swabia é uma região cultural e lingüística da Alemanha, e não
uma região física, demarcada). Foi muito fácil achar a taverna (palavra que
combina muito mais com a época medieval do que restaurante) e quando entramos
deixamos o século 21 pra trás e retornamos à Idade Média.
O interior é propositadamente “decorado” para se ter a sensação
de um ambiente medieval: armaduras de cavaleiros, iluminação à base de velas
(com candelabros cobertos pela cera derretida de centenas delas, como
esculturas de uma caverna), cabeças de animais selvagens penduradas pelas
paredes, peles felpudas cobrindo os bancos, paredes enegrecidas pelo tempo,
tudo ali criava uma atmosfera que remetia à época da História que inspirou a
maioria dos contos de fantasia. Dei cordas à imaginação e me permiti viver a
minha própria. Para tornar o momento ainda mais único, eis que surge do nada
uma dançarina com quatro malabares em chamas, executando uma dança alucinada e
cheia de contorcionismos. Não sei se tinha isso na época medieval, mas que foi
legal, ah, isso foi.
No dia seguinte acordaríamos bem cedo, para pegar o
ônibus que nos levaria a Cesky Krumlov, uma pitoresca cidadezinha no coração da
República Tcheca.
Carlos
ResponderExcluirComo sempre muito joia, esses artigos dão quase vontde de ir, mas qdo penso em passar o dia procurando as meninas atraz de lapide no cemitério me da uma canseira... daqui dez anos acho que vai dar.
Abração
Luciano