Ele foi direto pra sua casa depois do trabalho, como
de costume. Abriu a porta devagar e entrou, fechando-a lentamente, como se o
peso dela fosse muito maior que suas forças e motivos. Com o mundo trancado
para o lado de fora, ele experimentou, como todos os dias, o silêncio e o vazio
de sua casa e de sua vida. Apenas o eco respondia à sua pisada firme no piso de
taco. Apenas a brisa que entrava pela janela fazia movimento dentro da casa.
Rapidamente ele ligou a TV, a única voz “humana” além da dele próprio. Pronto,
se sentia um pouco melhor. Agora precisava se arrumar. Tirar do armário uma roupa
que o faria parecer menos desimportante.
Ele passava o dia isolado, trabalhando dentro de uma
minúscula cabine, que funcionava como guichê da companhia ferroviária. Nos
horários do café e do almoço ele continuava isolado, já que não tinha muito traquejo
social, muito menos daquele tipo que a cidade grande exigia, e sua natureza
arredia o rotulava ainda mais. A família agora se resumia apenas a rostos
sorridentes em seus sonhos, distantes como estavam, espalhados pelos rincões do
Brasil. Amigos do tipo que se compartilha emoções ele não tinha nenhum, ninguém
que lhe provesse compreensão ou simples ouvidos a escutar-lhe os sonhos ou
lamentos. E assim eram os seus dias já há quatro anos, quando chegou à grande
cidade, vindo de um interior miserável e decadente. Dolorosamente ele tinha
consciência de sua própria invisibilidade, de nada seu interessar a ninguém.
A solidão trazia-lhe ainda outra companheira inseparável:
a morte. Não que morreria de solidão, mas aquele estado de espírito parecia
atrair tal inquilino indesejável para dentro de sua mente, envenenando-a com
raciocínios de perda e esquecimento. E a possibilidade da morte instantânea e
violenta em qualquer veia podre daquela grande cidade era o toque final em um
estado de espírito que já há anos se desintegrava em medo e solidão. Sendo
assim, o seguro de vida, pago com os bicos que ele fazia aos finais de semana, o
perpetuaria ao trazer um auxílio redentor à sua família quando o provável
finalmente se manifestasse.
Chegou à seguradora e foi recebido com um sorriso
radiante, um bom dia, e um vigoroso aperto de mão. Devolveu com um leve esgar
desconfiado, o máximo que conseguia; não estava acostumado a sorrisos
radiantes. Na maioria das vezes não se é recebido dessa maneira em bares e
lojas de terceira categoria.
Tudo lhe foi perguntado. O questionário era enorme.
Doenças, históricos familiares, cirurgias, tudo isso entremeado por uma
conversa agradável sobre a vida, a família e o país. E sempre o sorriso
radiante. Nem se lembrava da última vez que tinha recebido atenção daquele
tipo, com aquela intensidade. Sem perceber, atravessou com inesperada ansiedade
aquela porta, súbita e momentaneamente aberta no deserto imutável de sua vida
invisível. Sentiu-se mais à vontade e timidamente começou a falar sobre a
família, agora devolvendo o sorriso, sua própria voz conduzindo-o pelos
inesquecíveis caminhos de suas mais ricas lembranças. Falou também sobre sua
terra natal, percorrendo na imaginação cada centímetro de suas muitas léguas e
suas muitas histórias. As palavras saíam-lhe aos borbotões e isso o
surpreendia. Estranhava-se na frente de um estranho. Mas sentia-se bem: há
quanto tempo não era abraçado por aquele orgulho, nascido de sua própria história?
Uma leve e breve sensação de felicidade, forjada apenas no frágil tecido dos
pensamentos, o fez ressurgir de seu limbo pessoal.
Terminada a entrevista e assinados os papéis ele foi embora.
Sabia que a atenção que havia lhe sido dada funcionava dentro de um esquema de
troca que não se relacionava sobremaneira com qualquer espécie de interesse
genuíno. Sabia que não haveria tantos sorrisos e gentilezas se não fosse ele um
cliente em potencial, porque era assim que as coisas funcionavam.
Mas também sabia, com uma certeza que o assombrava,
que o fardo, aquele que o oprimia há quatro anos, havia diminuído.
O destino, senhor dos caminhos improváveis, o havia
trazido gentilmente de volta ao grande palco da vida.
Esse texto me fez pensar num livro que li recentemente, "O extrangeiro" do Albert Camus... você passa 4/5 do tempo se perguntando onde o texto te leva prum arremate no fim. Tem um italiano que escreve com o mesmo estilo, Dino Buzzati, pra quem gostou desse texto vale a pena ler "o deserto dos tartaros" .
ResponderExcluirAbraçao Carlos, qdo tiver mais manda ai
Luciano