terça-feira, 29 de maio de 2012

BOUAZIZI

Mohamed Bouazizi é um nome que não desperta a reverência que deveria. Esquecido, ou desconhecido, pela massa mundial, esse jovem de 26 anos mudou o rumo da história, ascendendo a uma esfera onde pouquíssimos exemplares da espécie humana conseguiram chegar. Bouazizi não foi político, artista consagrado, esportista vitorioso ou cientista. Tampouco liderou passeatas ou comícios. Mas iluminou a vida de milhões de pessoas com a luz das chamas que consumiram o seu próprio corpo. Em dezembro de 2010, Bouazizi ateou fogo em si mesmo, e a Tunísia despertou de um regime ditatorial que já durava 23 longos anos. Em pouco tempo aquela nova ordem se alastrou pela África e Oriente Médio. Foi o início da Primavera Árabe.

            Bouazizi era o típico cidadão invisível desse nosso mundo contemporâneo: muito pobre - trabalhava desde os dez anos para sustentar a mãe doente e a irmã – sobrevivendo nos subterrâneos da pirâmide social, sem qualquer representatividade na estrutura política e econômica de seu país, e tudo isso agravado pela ditadura vigente na Tunísia. Nunca tendo conseguido qualquer emprego formal, Bouazizi vendia frutas e verduras pelas ruas de Ben Arous. Durante todos esses anos ele sofreu constante assédio da polícia local, que confiscava suas mercadorias, o agredia e tentava extorquir-lhe dinheiro. Até que finalmente uma policial confiscou seu carrinho de frutas e o proibiu de trabalhar, não sem antes dar um tapa em seu rosto e cuspir nele. Desesperado, ele então procurou pelo governo regional para resolver a sua situação, mas recebeu um não como resposta. Sem ter mais a quem recorrer, ele tomou a decisão que, sem que soubesse, mudaria de maneira radical e inédita o quadro político e social do mundo árabe: em frente ao prédio do governo local, encharcou seu corpo com diluente e ateou fogo. Vinte dias depois ele morria em um hospital perto de Túnis.
            Bouazizi, que só queria ser respeitado como trabalhador, deixou uma mensagem para sua mãe, pedindo perdão por ter perdido a esperança em tudo. Fico pensando: que estado de desesperança poderia levar uma pessoa a provocar em si mesma uma morte tão horrenda?
            Imaginar, e entender, o desespero de Bouazizi, significa projetar-se por toda a sua trajetória de vida e acompanhar a pequenez e fragilidade do homem comum diante da brutal e fria arquitetura dos poderes instituídos, bem como sua total impotência frente às decisões arbitrárias de líderes tão isolados em suas cabines de comando, tão distantes da realidade das ruas, que jamais deveriam ter o poder para defini-la. Bouazizi perdeu as esperanças porque não via futuro diferente do que havia sido sua vida até aquele momento: injustiças, sofrimento e humilhação. 
             Como uma espécie de divindade, os governos mundiais (e não somente as ditaduras) põem-se longe e acima das vistas da população, agem sem dar justificativas (ou as dão como distorções da verdade), determinam destinos com assinaturas velozes e gestos grandiloqüentes, tornam-se inacessíveis para tornarem-se inquestionáveis, e, como o mágico de Oz, criam ao seu redor uma fantasia de poder ilimitado para desestimular qualquer tentativa de aproximação e conhecimento da verdade. Interesses econômicos ou políticos geralmente são o motivo principal – e jamais assumido – para que as máquinas governamentais desprezem os direitos básicos de sua população, punindo ou excluindo qualquer um que ouse se meter nos negócios administrados pelos senhores do mundo.

Bouazizi perpetrou sua auto-imolação em praça pública porque sabia ser esse seu único e último grito por justiça, tão alto que finalmente seria ouvido além dos intransponíveis muros que separam os governados de seus governantes. Ao dar esse grito de dor e revolta, Bouazizi deixou de ser invisível e passou a existir, a ser alguém, ainda que tivesse pagado com a própria vida para que isso acontecesse.
Dias depois o ditador Ben Ali o visitou no hospital. Preocupado com as constantes manifestações da população após o caso, ele tentou adotar medidas emergenciais para amenizar os altos índices de desemprego e diminuir a insatisfação geral. Mas o povo da Tunísia já havia tomado a sua decisão, e, dois meses depois, após muitos conflitos violentos, Ben Ali finalmente foi obrigado a renunciar e fugir para a Arábia Saudita. Em pouco tempo as populações de outros países árabes começaram a seguir o exemplo tunisiano.
Vítimas de governos que precarizam a condição humana não são exclusividade do mundo árabe. Em nosso próprio país vai aos milhares o número de casos de injustiça, desrespeito, abuso de poder, retaliação e perseguição perpetrados contra a população, principalmente os mais pobres, sem qualquer resposta positiva por parte do governo ou da própria sociedade, que apenas se mostra indignada diante das notícias. Muitos são os que, em nosso país, possuem tantos motivos quanto Bouazizi para gritar sua revolta e sofrimento a plenos pulmões.
Semana passada, conheci o caso de uma trabalhadora de uma grande empresa multinacional aqui no Brasil, que, apesar de seriamente doente devido à exposição a agentes nocivos no seu ambiente de trabalho, foi demitida sem qualquer direito à defesa. Como forma de protesto, acampou em frente à empresa, acorrentando-se ao portão. Mesmo assim a injustiça ainda continua.
Qual será o próximo passo a ser dado por ela?
Atear fogo ao próprio corpo?

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Dependência Química - Conto


Em uma de suas mãos ele segurava uma flor. Com a outra, vagarosamente, ele tirava a penúltima pétala, deixando-a cair no chão junto às outras
João era passional ao extremo. Entrava fundo em qualquer relação, destilava paixão pelos poros. Ficava incompleto quando não se sentia apaixonado, sentia falta mesmo da dor da paixão. Era seu vício, quando produzia sua substância mais quintessenciada. Quando estava apaixonado, enxergava o mundo com uma leve sombra vermelho-fogo; era essa a cor que lhe invadia a mente, em abundantes interações sinestésicas.  As paixões sempre o consumiam, em um êxtase desavergonhado.

O fim de um relacionamento, para ele, não era o fim; era, sim, o começo de uma nova corrente de sentimentos. Não ser correspondido o fazia sofrer, mas também o deixava encantado. Era quando ele escrevia poemas, interiorizava profundamente cada pingo de sentimento, se esmerava em compor canções. Sentir-se abandonado era sentir-se vivo. Chegava mesmo a desejar que o abandonassem, só para poder se entregar a tais sentimentos, para ele tão nobres.
Mas nem só de paixões clássicas ele vivia. Gostava de variações sobre esse tema. Por exemplo, em duas ocasiões ele resolveu se apaixonar por duas mulheres ao mesmo tempo. Ingenuamente, pensou que talvez não tivesse espaço no coração para duas paixões, ao que se verificou o contrário, talvez tivesse para três. Comedido como era contentou-se com duas, duas vezes: uma vez deixando que soubessem uma da outra e outra não. Isso porque quando sabiam, terminavam o relacionamento com raiva e rancor, e ele gostava daquela variação, de sentir a dor da paixão como um canalha.
Mas, ás vezes, era ele quem punha fim ao romance, intencionalmente, criando condições para o surgimento daquele estado de espírito que ele tanto desejava. Quando isso acontecia, as qualidades da mulher por ele abandonada, agora fora de seu alcance, de uma hora pra outra eram abrilhantadas por uma luz que quase o cegava, o que transformava sua ausência em algo ainda mais sentido, entranhado, digno de uma contemplação ardente.

            Mas quando o romance era terminado pela mulher, ah, aí sim, era quando ele sofria de verdade! O coração não parava quieto, e ele olhava repetidamente para todas as fotos com a mulher amada, lembrando com intensidade de cada bom momento. Havia uma mistura estranha de tristeza, pelo término não desejado do romance, e alegria, por antever o longo caminho da paixão não correspondida que havia à sua frente. E por esse caminho ele trilharia, se fartando da dor da paixão. Nem ele entendia bem esse estado de coisas, mas aquilo, de alguma maneira, o alimentava, deixava-o mais vivo.
            Agora, ele olhava para a última pétala antes dela se depositar no chão com as outras.
- Bem me quer! – disse ele
            E lá ia ele mais uma vez, se apaixonar de novo . . .